22 março, 2007


Duelo de Bambas
A polêmica musical entre Noel Rosa e Wilson Batista


A famosa polêmica teve início em 1934 quando Silvio Caldas gravou o samba Lenço no pescoço, sexta composição de Wilson Batista, e cuja letra, o autor exaltava a malandragem.

Meu chapéu de lado/tamanco arrastando/lenço no pescoço/navalha no bolso/eu passo gingando/provoco e desafio/eu tenho orgulho de ser tão vadio (...)

Noel Rosa não gostou. Então compõe Rapaz folgado como resposta.

Deixa de arrastar o teu tamanco/pois tamanco nunca foi sandália/e tira do pescoço o lenço branco/compra sapato e gravata/joga fora essa navalha/que te atrapalha (...) Malandro é palavra derrotista/que só serve pra tirar todo valor do sambista/ por isso proponho ao mundo civilizado/não te chamar de malandro/mas de rapaz folgado.

O “duelo musical” então passou a ser comentado nas rodas de músicos que se reuniam no Café Nice, reduto de feras como Mário Lago, Custódio Mesquita, Orestes Barbosa, Ataulfo Alves entre tantos outros. Wilson Batista retruca com Mocinho da Vila:

Você que é mocinho da Vila/fala muito de violão/barracão e outras coisas mais/se não quiser perder o seu nome/cuide do seu microfone/e deixe quem é malandro em paz/injusto é seu comentário/fala de malandro quem é otário (...)

Apesar da polêmica, Noel e Wilson ficam amigos. Mas quando Noel lança belíssimo Feitiço da Vila, parceria com Vadico (Oswaldo Gogliano),

Quem nasce lá na Vila/nem sequer vacila ao abraçar o samba/que faz dançar os galhos do arvoredo/e faz a lua nascer mais cedo (...)

Wilson Batista não resiste retomando a polêmica com o samba Conversa fiada:

É conversa fiada/dizerem que o samba na Vila tem feitiço/eu fui lá/ e não vi nada disso (...)

Conversa fiada fez Noel acreditar que Wilson realmente estava querendo briga, resolvendo dar continuidade a polêmica musical, que para ele, Noel, não tinha a menor importância. Foi assim que em 1936 uma cantora de vinte anos, Aracy de Almeida, grava Palpite Infeliz, mas uma parceria com Vadico. Esta resposta a Wilson, desmentindo os que negam a polêmica.

Quem é você que não sabe o que diz/meu Deus do céu que palpite infeliz/salve Estácio, Salgueiro, e Mangueira, Osvaldo Cruz e Matriz/que sempre souberam muito bem/que a Vila não quer abafar ninguém/só que mostrar que faz samba também (...)

No Café Nice, alguns declaravam que Noel estaria compondo uma série de sambas objetivando replicar as expressões de Wilson Batista; outros garantiam que era Wilson que criara uma coleção definitiva, com torpezas e inferioridades envolvendo Vila Isabel e Noel Rosa. Á esta altura Wilson resolveu apelar e baixou o nível da polêmica fazendo referência ao defeito do queixo de Noel, com o maldoso, Frankenstein da Vila.

Boa impressão nunca se tem/quando se encontra um certo alguém/que mais parece o Frankenstein/mas como diz o refrão/por uma cara feia/perde-se um bom coração/entre os feios/estás na primeira fila/eu te batizo/Fantasma da Vila (...)

Desta vez Noel não reagiu de imediato dando tempo e terreno para que Wilson atacasse mais uma vez com um novo samba intitulado Terra de cego.

Perde a mania de bamba/todos sabem qual é/o teu diploma no samba/és o abafa da Vila/eu bem sei/mas na terra de cego/quem um olho é rei (...)

Mas para Noel a disputa estava encerrada. Num encontro casual entre os compositores, que riram muito da propalada polêmica musical. Noel então joga uma pá de cal definitiva na “falsa inimizade” com Wilson Batista, e usando a música que este usara em Terra de Cego, Noel escreveu os versos para o samba Deixa de ser convencido.

Deixa de ser convencido/todos sabem qual é/teu velho modo de vida/és um perfeito artista/eu bem sei/ (...) E no picadeiro desta vida/serei o domador/serás a fera abatida (...)

Alguns dos sambas que fizeram parte da polêmica não chegaram a ser gravados no momento em que foram compostos, ou seja, no aceso da briga entre Wilson Batista e Noel Rosa. Depois de os compositores se tornarem amigos, de até mesmo negarem a polêmica, e Noel ter morrido, é que a briga passou ao disco na forma como aconteceu. Foi, em 1956, quando Roberto Paiva cantou as composições de Wilson, e Francisco Egídio, as de Noel. Um LP de dez polegadas, hoje peça de coleção, com capa antológica do cartunista Nássara. Ironicamente, foi o próprio Wilson Batista quem bolou a posição dos dois na capa do disco, exigiu a camisa do Flamengo e, praticamente, ditou o texto de apresentação do disco.

Noel morre em 4 de maio de 1937. O grande público reconheceria definitivamente seu talento dez anos depois. Setenta anos depois de sua morte, o Poeta da Vila é tema de homenagens, peças de teatro e até de filme sobre sua vida. Quanto a Wilson Batista,não devemos opinar sobre sua obra apenas quanto aos sambas que fizeram parte da polêmica musical com Noel Rosa. No túmulo do Poeta da Vila, a última homenagem em forma de versos escritos por ele e extraídos de Silêncio de um minuto (1935):

Luto preto é vaidade/neste funeral de amor/o meu luto é a saudade/e a saudade não tem cor (...)

Wilson Batista morreria trinta anos depois de Noel, em 1967, sozinho, esquecido e pobre num hospital do Rio de Janeiro. No fim, Wilson tinha um fiapo de voz e mal podia bater seu ritmo preferido, o samba, numa caixa de fósforo, instrumento dos compositores sem conhecimento formal em música. Wilson deixou obras primas como Louco (ela é seu mundo), Pedreiro Waldemar, (imortalizada na voz de Blecaute), Bonde São Januário, (parceria com Ataulfo Alves), Mãe Solteira, Seu Oscar , Acertei no milhar, (com Geraldo Pereira), Dolores Sierra, (grande sucesso na voz de Nelson Gonçalves), e assim por diante totalizando mais de 700 composições.

O poeta Manuel Bandeira declarou certa vez que os versos mais bonitos da música brasileira são – “Tu pisavas nos astros distraída” poema de Orestes Barbosa para Chão de Estrelas e “nos olhos das mulheres/ no espelho do meu quarto/é que eu vejo a minha idade/ o retrato na sala, faz lembrar com saudade/a minha mocidade/ a vida para mim/ tem sido tão ruim/ só desenganos/ ah, eu daria tudo/ para poder voltar aos meus vinte anos”, letra de Wilson Batista para Meus vinte anos.

Humberto Oliveira

21 março, 2007


Vadico, o parceiro perfeito de Noel


Parceiros, Noel teve muitos. Truculentos como o pugilista Kid Pepe, geniais como Cartola e João de Barro, chegados na malandragem como Ismael Silva e Heitor dos Prazeres, poetas como Orestes Barbosa e Lamartine Babo. E outros de diferentes estilos. Mas o que mais casou com os versos, o humor e o talento do Poeta da Vila foi o paulista Osvaldo Gogliano, ou simplesmente Vadico.

Noel conheceu Vadico em 1932. O encontro aconteceu nos estúdios da gravadora Odeon. Por sugestão do maestro Eduardo Souto, Noel ouviu uma das melodias de Vadico. Dois dias depois, estava pronto um dos maiores clássicos da música popular brasileira, o samba Feitio de Oração, e nascia a parceria mais perfeita da carreira de Noel Rosa. E, naturalmente, de Vadico também.

Além de Feitiço da Vila, eles foram parceiros em Conversa de botequim, Pra que mentir?, Quantos beijos, Só pode ser você, Cem mil réis, Tarzan, o filho do Alfaiate.

E assim, o italiano, paulista do Brás, acabou por se tornar no parceiro que mais se entrosou com o samba carioquíssimo de Noel Rosa. A inspiração do piano de Osvaldo Gogliano era o contraponto ideal para a poesia de Noel.
Humberto Oliveira

19 março, 2007


Setenta anos sem Noel Rosa, o Poeta da Vila

No dia 4 de maio deste ano, os apreciadores da legitima música popular brasileira relembram o falecimento de um dos mais expressivos e geniais compositores. Há setenta anos morria Noel de Medeiros Rosa, Noel Rosa, o Poeta da Vila, que deixou mais de duzentas composições, algumas entre elas se tornaram clássicos da nossa música como Último desejo, Três apitos, Conversa de Botequim, Feitio de Oração, Palpite Infeliz, Não tem tradução, Feitiço da Vila, Filosofia e tantas outras que se fossem relacionadas aqui, certamente tomariam inúmeras e merecidas páginas.

Tudo começou naquele chalé modesto da Rua Teodoro da Silva, onde Noel nasceu em 11 de dezembro de 1910, de parto a Fórceps, que provocou afundamento e fratura no maxilar, causando no queixo o defeito que o acompanharia por toda a vida. O pai era Manuel Garcia de Medeiros Rosa, que lhe ensinaria os primeiros acordes no violão. A mãe, a professora Martha de Medeiros Rosa, mantinha uma escola na própria casa da família.

A vida de Noel Rosa foi curta, apenas oito anos, mas a carreira foi uma das mais produtivas da história do nosso cancioneiro e o bastante para influenciar a cultura brasileira. A vida de Noel passou rápida, musical e bonita, terminando como começou, no chalé de madeira onde nasceu, na Vila Isabel.

Muito foi dito e escrito sobre a obra e a vida de Noel Rosa, que morreu jovem, com apenas 26 anos e cinco meses vividos com muita intensidade e paixão. Mas tudo que se disse dele ou de seus sambas, marchas carnavalescas, paródias, ainda é pouco quando conhecemos a extensão de sua obra como compositor, que influenciou artistas como Chico Buarque e Paulinho da Viola.

A música de Noel Rosa teve inúmeros interpretes como Francisco Alves, Mário Reis, Silvio Caldas, Orlando Silva, Moreira da Silva,mas foram duas cantoras que realmente souberam traduzir Noel com suas interpretações: Aracy de Almeida e Marília Batista, cada uma ao seu modo se tornariam herdeiras que imortalizariam muitos de seus sambas.

É impossível, que numa antologia sobre Música Popular Brasileira, uma ou duas músicas de Noel Rosa não estejam ali incorporadas no repertório. Interpretes como Nelson Gonçalves, Mário Reis, Aracy de Almeida, e Maria Bethânia gravaram discos inteiros dedicados a composições do Poeta da Vila. Isso não é para qualquer um, muito menos para um artista morto há setenta anos e que surgiu numa época que não havia televisão e nem mesmo a Revista do Rádio que anos mais tarde,assim como a televisão, revelaria não apenas a voz do artista,mas também seu rosto para o público.

Noel faz parte do seleto clube que reúne monstros sagrados, mas esquecidos da nossa música. Ary Barroso dominou o cenário musical brasileiro por nada menos que seis décadas,inclusive abençoando a Bossa Nova, como atesta o registro fotográfico que flagrou Ary com Tom Jobim, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, três dos pilares do movimento que teve início a partir de 1957 e logo ganhou o mundo.

Apenas mais dois compositores podem ser citados como integrantes deste seleto grupo de artistas que se tornaram unanimidades – João de Barro, o Braguinha que faleceu este ano quando completaria oitenta anos de atividades como compositor, e claro, Dorival Caymmi com quase sessenta anos de carreira.
Humberto Oliveira
foto - Capa do songbook de Noel Rosa lançado nos anos 90 reunindo grandes nomes da MPB como Tom Jobim, Chico Buarque, João Nogueira, Gal Costa, Carlos Lyra, Luiz Melodia, Maria Bethânia, Nelson Gonçalves entre outros.